O que está por trás da rejeição do leite nos laticínios? Entenda o que pode ser feito para evitar resultados falso-violativos.
Introdução
Considerada a doença de maior impacto na pecuária leiteira, a mastite bovina causa prejuízos econômicos significativos devido à diminuição da produção, descarte do leite dos animais tratados, alteração na qualidade e descarte precoce de vacas com infecções crônicas, além dos custos com tratamentos. Ademais, o uso de antimicrobianos no tratamento da mastite exige um rigoroso controle para evitar a presença de resíduos no leite destinado ao consumo humano (DOS SANTOS et al., 2017).
A detecção e o controle de resíduos de antimicrobianos no leite são essenciais, tanto por questões de saúde pública, quanto por seus impactos econômicos. Tais resíduos podem persistir mesmo após processos térmicos como a pasteurização e o tratamento UHT, o que compromete a segurança e a qualidade do produto final. Além disso, interferem negativamente na atividade de bactérias lácticas utilizadas na produção de derivados fermentados e queijos, podendo ocasionar alterações no alimento, como sabor amargo, e prejudicar o desenvolvimento e tempo de prateleira do produto (GOMES, 2017).
Com o objetivo de assegurar a qualidade e segurança dos alimentos, órgãos internacionais como o Codex Alimentarius estabeleceram limites máximos de resíduos (LMR) para diversas substâncias antimicrobianas utilizadas em animais de produção. Esses limites definem a concentração máxima permitida de resíduos no leite e em outros alimentos de origem animal, que não oferece risco à saúde humana. Dessa forma, o consumo de leite contendo níveis de antimicrobianos abaixo do LMR é considerado seguro para o consumidor (WHO, 2017; CODEX ALIMENTARIUS, 2023).
Limite Máximo de Resíduo (LMR)
O LMR é definido como a concentração máxima de um resíduo de medicamento veterinário que pode estar presente em alimentos de origem animal sem representar risco à saúde humana, conforme avaliação toxicológica prévia. No Brasil, o estabelecimento e monitoramento desses limites são de responsabilidade do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), por meio do Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC). O MAPA segue as diretrizes estabelecidas por entidades internacionais, como o Codex Alimentarius, para definir o LMR de cada substância ativa presente em medicamentos veterinários. Então, produtos de origem animal que apresentem resíduos em níveis iguais ou abaixo desses limites são considerados seguros para o consumo humano (BRASIL, 1999; BRASIL, 2017).
Atualmente, os limites máximos permitidos de qualquer medicamento de uso veterinário, presente nos tecidos e derivados de origem animal, encontram-se disponíveis na INSTRUÇÃO NORMATIVA – IN N° 162, DE 1° DE JULHO DE 2022, publicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, no Diário Oficial da União.
Com base nessas diretrizes, a indústria veterinária segue os parâmetros estabelecidos pelo MAPA para determinar o período de carência dos medicamentos, ou seja, o intervalo necessário após a última aplicação até que os resíduos liberados estejam abaixo do LMR, especialmente em produtos como o leite (BRASIL, 2020).
Descarte zero X resíduo zero
É fundamental compreender que os termos “descarte zero” e “resíduo zero” possuem significados distintos no contexto da produção leiteira. Quando um medicamento veterinário apresenta em sua bula a indicação de “descarte zero de leite”, isso significa que, após a administração do fármaco, o leite produzido pelo animal pode ser destinado ao consumo humano sem a necessidade de um período de carência. No entanto, isso não implica que o leite esteja completamente isento de resíduos do medicamento. Pois, todo medicamento administrado no animal é metabolizado e eliminado, sendo o leite uma das principais vias de eliminação de resíduos provenientes dos fármacos. Na realidade, o leite é uma das principais vias de excreção de metabólitos, e é possível que resíduos estejam presentes, embora em concentrações inferiores ao Limite Máximo de Resíduo (LMR) estabelecido pelas autoridades sanitárias. Portanto, “descarte zero” refere-se à conformidade com os LMRs legais, enquanto “resíduo zero” indicaria a completa ausência de resíduos (GOMES, 2017).
Testes para detecção de resíduos de antimicrobianos e suas limitações
A detecção de resíduos de antimicrobianos no leite é essencial para garantir a segurança alimentar e evitar rejeição de lotes pelos laticínios. Os testes utilizados para essa finalidade incluem (BASTOS, 2012; GOMES, 2017):
- Testes Microbiológicos: baseiam-se na inibição do crescimento de microrganismos indicadores na presença de antimicrobianos. Apresentam alta sensibilidade, mas podem apresentar falsos positivos devido a substâncias naturais presentes no leite como a lactoferrina e a lisozima.
- Testes Imunocromatográficos (testes rápidos/testes de triagem): detectam resíduos específicos de antibióticos através de reações antígeno-anticorpo. São rápidos e fáceis de usar, mas possuem variações na especificidade dependendo do antibiótico detectado. Apresentam maior chance de resultados falso-violativos, ou seja, quando o teste acusa positividade mesmo estando abaixo do LMR.
- Cromatografia e Espectrometria de Massas: Métodos altamente precisos utilizados para confirmação laboratorial de resíduos de antimicrobianos no leite, que respondem com exatidão qual a concentração do ativo presente na amostra analisada.
Apesar da existência de protocolos analíticos validados, os testes de triagem utilizados pela indústria de laticínios ainda enfrentam limitações. Devido à sua elevada sensibilidade e baixa especificidade, eles podem acusar positividade em amostras cujo teor de resíduos esteja abaixo do LMR legal. Esse fenômeno, denominado resultado falso-violativo, gera insegurança no setor produtivo e perdas econômicas decorrentes do descarte de leite que, tecnicamente, seria seguro para o consumo humano (SOMATICELL, 2020).
Essas falhas reforçam a necessidade de utilização combinada de testes de triagem e testes confirmatórios, além da validação contínua das metodologias empregadas frente às atualizações dos LMRs e aos avanços analíticos. A detecção de resíduos de antimicrobianos é fundamental para garantir a segurança do consumidor, mas é essencial que os métodos utilizados sejam cientificamente validados para evitar prejuízos desnecessários aos produtores (BARKEMA, 2006; SOMATICELL, 2020).
Pontos de atenção para evitar prejuízos com o descarte de leite
Devido a essa possibilidade de resultados falso-violativos, indicamos algumas medidas preventivas que podem ajudar a evitar prejuízos e garantir maior segurança na liberação do leite:
• Realizar testes rápidos na própria fazenda antes de misturar o leite de vacas tratadas com antibiótico ao tanque coletivo. Dessa forma, é possível identificar previamente qualquer resultado positivo e evitar o descarte de grandes volumes;
• Estender o período de descarte do leite nos casos em que houver uso concomitante de antibióticos injetáveis à terapia intramamária, ou quando muitos animais forem tratados simultaneamente;
• Separar lotes de vacas em tratamento na fazenda e registrar corretamente o brinco, a data, o horário e a via de aplicação do antibiótico, para melhor controle e rastreabilidade;
• Descartar o leite de vacas tratadas dos quatro quartos e não somente do quarto mamário tratado, até que o resultado do teste seja negativo.
Outro ponto de atenção importante, é em relação ao número de vacas tratadas ao mesmo tempo na fazenda. Quando muitas vacas em lactação recebem antibiótico no mesmo período, mesmo respeitando o tempo de descarte indicado na bula, pode haver acúmulo de resíduos no leite do tanque. Isso, aumenta a chance de o teste de triagem detectar resíduos e rejeitar o leite, mesmo que, cada vaca isoladamente esteja liberando resíduos dentro do LMR permitido. Por isso, é recomendado estabelecer um plano de tratamento juntamente com o médico veterinário e, se possível, evitar tratar muitos animais ao mesmo tempo. Pois, essa medida ajuda a reduzir o risco de perdas e aumenta a segurança no envio do leite ao laticínio.
A adoção dessas práticas pode contribuir significativamente para reduzir perdas econômicas e garantir que o leite esteja em conformidade com os padrões exigidos pelos laticínios. Além disso, sempre que houver suspeita de resíduos, recomenda-se que sejam utilizados testes quantitativos para confirmação, uma vez que fornecem resultados mais precisos e evitam decisões baseadas em falsos positivos dos testes de triagem.
Para mais informações, entre em contato conosco!
Texto: Aline M. Carvalho
Referências
- BARKEMA, H. W., SCHUKKEN, Y. H., ZADOKS, R. N. Invited review: The role of cow, pathogen, and treatment regimen in the therapeutic success of bovine Staphylococcus aureus mastitis. Journal of dairy science, 89(6), 1877-1895. 2006. DOI: 10.3168/jds.S0022-0302(06)72256-1.
- BASTOS, L. P. F. de. Avaliação da capacidade de detecção de resíduos de antimicrobianos no leite por um método de inibição microbiana. Dissertação (Mestrado em Ciência e Tecnologia de Alimentos) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUOS-97CFJR. Acesso em: 13 de maio de 2025.
- BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Manual de orientação para implantação de programas de controle de resíduos de medicamentos veterinários em alimentos de origem animal. Brasília: MAPA, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br. Acesso em: 24 jun. 2025.
- BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO (MAPA). Instrução Normativa nº 76, de 26 de novembro de 2018. Dispõe sobre a qualidade do leite cru refrigerado, pasteurizado e tipo A.
- BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Decreto Número 9.013, de 29 de março de 2017, que aprova o novo Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br
- BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Instrução Normativa Número 42 de 20 de dezembro de 1999, que altera o Plano Nacional de Controle de Resíduos em Produtos de Origem Animal – PNCR. Publicado no Diário Oficial da União de 22 de dezembro de 1999, Seção 1, p. 13. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br
- CODEX ALIMENTARIUS. Maximum Residue Limits (MRLs) and Risk Management Recommendations (RMRs) for Residues of Veterinary Drugs in Foods. FAO/WHO, 2023. Disponível em: https://www.fao.org/fao-who-codexalimentarius. Acesso em: 13 de maio de 2025.
- DOS SANTOS, W. B. R., DE OLIVEIRA, N. C., DE LIMA VIEIRA, M., RIBEIRO, J. C., CEZÁRIO, A. S., CAMARGOS, A. S., VALENTE, T. N. P. MASTITE BOVINA: UMA REVISÃO. Colloquium Agrariae, vol. 13, n. Especial, Jan–Jun, 2017, p. 301-314. ISSN: 1809-8215. DOI: 10.5747/ca.2017.v13.nesp.000235.
- GOMES, F. P. C. Resíduos de antimicrobianos em leite pasteurizado e o efeito inibidor sobre bactérias lácticas para elaboração de produtos lácteos fermentados. Dissertação (Mestrado em Ciência e Tecnologia de Alimentos) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/5958. Acesso em: 13 de maio de 2025.
- SOMATICELL. Falsos positivos em testes rápidos: entenda o conceito de falso-violativo. Boletim Técnico, 2020. Disponível: https://www.somaticell.com.br/testes-de-residuos-de-antibioticos-o-que-sao Acesso em: 19 de maio de 2025.
- WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Guidelines for the Evaluation of Veterinary Drug Residues in Food. Geneva: WHO, 2017.
